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É preciso viver das Aldeias

Rui Simão, 14 jun 2021
“São os homens, não as pedras, que fazem a força das muralhas.” Platão

É por todos conhecido que vivemos num país de “risco ao lado”. Um país que, de ano para ano, o vai aproximando de uma das orelhas para, assim, repuxar cabelo que tape a calvície. Pessoas, economia e serviços de interesse público, concentram-se nos territórios mais competitivos do litoral, num fenómeno amplificado por uma Administração Regional e Local caótica e com capacidade de decisão e integração de políticas setoriais promovidas pela Administração Central no mínimo discutível. Temos um mapa para o ensino, outro para a saúde, outros, ainda, para o turismo, o desporto ou a proteção civil.
 
Evoluímos dos distritos para as NUTS III (unidades territoriais para fins estatísticos) e destas para as CIM (comunidades intermunicipais). Em muitos casos ganhámos escala perdendo coerência. Construímos poderes e atribuímos responsabilidades políticas desarticuladas com a identidade, a cultura e o sentido de pertença ao território. É disto evidência a extinção, por exemplo, das NUTS do Pinhal Interior Norte e Sul e o seu espartilho pelas CIM da Beira Baixa, do Médio Tejo, da Região de Leiria, da Região de Coimbra e das Beiras e Serra da Estrela.
 
Janeiro de Baixo, Janeiro de Cima e Cambas, apenas para citar um caso, são três aldeias historicamente interdependentes e ligadas pelo rio Zêzere a escassos quilómetros umas das outras. Mas cada uma pertencente à sua CIM, designadamente à Região de Coimbra,  às Beiras e Serra da Estrela e à Beira Baixa, cada uma com os seus ritmos, fóruns e tempos de decisão distintos. Casos como este repetem-se por todo o vale do Zêzere e pelas serras da Lousã e do Açor. Quem pensa à escala territorial das aldeias? Quem lidera o seu destino? Com que visão de futuro?
 
Se ninguém localmente responder a estas perguntas com um singelo e indispensável “sou eu”, resta-nos pensar em ordenamento florestal, desenvolvimento turístico, conservação da natureza e da paisagem, para citar alguns dos caminhos que desgarrados não levam a mais do que locais sem gente, sem alma, sem futuro. Não é possível manter os ecossistemas em equilíbrio sem manter a cultura viva dos lugares. Não é possível entender a linguagem silenciosa do mundo sem compreender a interdependência dos sistemas naturais e humanos. Não é possível manter a vitalidade dos lugares sem o confronto físico com a natureza.
 
É preciso viver DAS aldeias e não apenas NAS aldeias. Importa, pois, encontrar neste país das aldeias os seus líderes, e dar-lhes todo o apoio e força que consigamos par ampliar a escala social e territorial da sua intervenção. Urge encontrar interdependências do turismo com a agricultura, destes com a exploração florestal, a pastorícia e a gastronomia. Relacionar saberes locais com o conhecimento científico e conjugar serviços públicos com inovação.
 
Fazer da vida coletiva um processo de aprendizagem libertador de ideias feitas. É preciso exigir ao país e desafiar as suas instituições a parar para pensar o interior a partir das aldeias e das suas relações com o mundo. É preciso pisar caminhos menos percorridos. É preciso experimentar sem medo do caminho ou do insucesso, e replicar o que alcançarmos de bom. Talvez não sem reconhecer que não é possível construir futuro a partir de todas as aldeias de Portugal. Mas até este pesado mas esclarecido compromisso requer planeamento e ação imediata, porque um país moderno não pode conviver em paz com a desgraça e a ruína das células mais vitais na relação com a sua terra e o seu lugar no mundo.