Foi com uma ovação de pé, assobios de aclamação e um caloroso “bravo” que o público reagiu ao concerto de Miguel Calhaz no encerramento da Semana Aberta XJazz Aldeias do Xisto, no passado sábado, 15 de julho, em Janeiro de Cima, concelho do Fundão.
O músico apresentou o segundo volume do projeto ContraCantos, uma homenagem singular aos grandes nomes da música de intervenção portuguesa — Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho e Adriano Correia de Oliveira — com um formato desafiante: apenas voz e contrabaixo. A emoção do público foi palpável, num momento que sintetizou a força afetiva e artística que percorreu toda a semana.
Aquele momento final foi o culminar de uma semana intensa de criação, reflexão, fruição e encontro, que fez de Janeiro de Cima o centro vibrante do XJazz – Encontros do Jazz nas Aldeias do Xisto, organizado pela ADXTUR – Agência para o Desenvolvimento do Território das Aldeias do Xisto e pela Associação Jazz ao Centro Clube (JACC), no âmbito do programa Xclusive Xisto. De 6 a 12 de julho, a aldeia ribeirinha do Zêzere acolheu músicos, agentes culturais e visitantes para uma programação que cruzou residências artísticas, concertos e partilha de saberes — num ambiente de comunhão com o território e as suas gentes.
A semana começou com uma residência artística liderada pelo trompetista Peter Evans, referência mundial do jazz contemporâneo, que trabalhou ao longo de vários dias com António Carvalho (bateria), Duarte Ventura (vibrafone), Maria João Leite (saxofone), Júlia Miranda (contrabaixo) e João Clemente (guitarra), jovens músicos portugueses. “Foi uma oportunidade rara para eles acompanharem uma figura incontornável do jazz atual”, explica José Miguel Pereira, coordenador do JACC.
A apresentação pública da residência teve lugar na quarta-feira e assinalou o primeiro momento de partilha com a comunidade. Para o coordenador do Jazz ao Centro Clube, esse dia foi revelador da “energia especial” vivida na aldeia e do modo como ela “acolhe quem vem de fora”. Durante a semana, conta, “muitas pessoas abriram as suas casas aos músicos e artistas, para conhecer melhor a cultura e a identidade local”.
Ao longo da semana seguiram-se outras propostas artísticas, como o trabalho audiovisual de Francisco Correia, que explorou o tema da paisagem com uma abordagem contemplativa e sensorial, e ainda o encontro de coletivos culturais e agentes locais, realizado na manhã de sábado, onde se discutiram práticas colaborativas e propostas para o futuro. Desse encontro, aponta José Miguel, “surgiram propostas concretas de trabalho colaborativo que, esperamos, possam ser integradas na parceria com a ADXTUR, ajudando a traçar caminhos futuros com base nas comunidades e no território.”
O encerramento ficou a cargo de Miguel Calhaz, que emocionou o público com uma performance que funde música de intervenção e tradições orais num formato pouco convencional. “É uma linguagem própria, uma simbiose entre a voz e o contrabaixo. Vou até aos limites do instrumento: melodia, percussão, harmónicos, canto. É uma abordagem exigente, mas profundamente gratificante”, partilhou o músico, natural de Pedrógão Pequeno, também uma Aldeia do Xisto.
Mas para o músico, trazer este trabalho a Janeiro de Cima teve um significado especial: “Foi muito enriquecedor. Estas aldeias têm uma identidade fortíssima, um acolhimento caloroso. A música vive de contexto, e aqui ganha outro sentido.” Disse-o em palco e reforçou depois: “É urgente relembrar esta mensagem — de resistência, de liberdade, de memória. E também valorizar as canções tradicionais da Beira Baixa e da Zona do Pinhal, que são um património vivo que não podemos deixar esquecer.”
No final, entre aplausos demorados, Catarina Gama, residente em Janeiro de Cima, resumiu o que muitos sentiram. “Hoje surpreendeu-me completamente, não conhecia o Miguel e adorei mesmo. Acho que até me emocionei, pelo trabalho dele… pela voz.., as canções… estou encantada”.
Mas o impacto não ficou por aí. Catarina acompanhou de perto toda a semana e diz que “foi muito bonito. Conhecemos pessoas incríveis, vivemos coisas diferentes. Acabámos por entrar no espírito dos músicos e dos artistas — e eles também entraram no nosso". Com orgulho e um olhar atento ao que a aldeia se tornou, acrescenta: “Janeiro de Cima mudou muito. Às vezes criticam tanto o ‘turismo.., o turismo..’, mas também trouxe coisas boas. Nós sabemos receber, gostamos de receber. E quando entram no nosso espírito, como esta gente entrou, tudo faz sentido.”
A Semana Aberta XJazz, integrada no programa Xclusive Xisto, assumiu-se como um laboratório vivo de criação artística em meio rural, onde se cruzam processos, pessoas e paisagens. Mais do que um evento pontual, este formato aberto permite experimentar novas formas de relação entre artistas e comunidade, mantendo viva a essência dos Encontros do Jazz nas Aldeias do Xisto, ciclo iniciado em 2012.
É nesse equilíbrio entre continuidade e reinvenção que a ADXTUR e o JACC continuam a investir, fazendo das aldeias não só espaços de acolhimento, mas também lugares onde a criação contemporânea pode enraizar-se, transformar-se e dialogar com o território.



























