A Aldeia do Xisto da Figueira tem, habitualmente, 19 habitantes. Mas o número de pessoas que se juntaram no Pátio da Ti’Augusta, na noite de 16 de junho de 2018, para ouvir e conhecer a música de Paolo Angeli foi bem superior.
O espetáculo integra a programação do XJazz- Encontros de Jazz das Aldeias do Xisto 2018, uma iniciativa da ADXTUR- Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto e do JACC - Jazz ao Centro Clube, que decorre até setembro.
De calças de ganga, camisola às riscas azuis e brancas e descalço. Foi assim que o músico da Sardenha se apresentou ao público que o aguardava. No rosto, um ar simpático, tranquilo e sereno, de quem está onde quer, com quem quer e a fazer o que quer.
Sorriu, acenou, elogiou a aldeia, "um sítio muito especial com muitos gatos" que tem um "povo maravilhoso". Enalteceu ainda, em tom de brincadeira, a "cozinha ligeira" que momentos antes pôde conhecer e provar no restaurante Casa Ti'Augusta, em que as iguarias beirãs, confecionadas maioritariamente à base de carne de cabra, cabrito e porco, são protagonistas.
Pronto para começar, sentou-se e, acompanhado pela sua guitarra da Sardenha 'melhorada', deu início ao concerto.
Uma música suave que, de repente, se intensifica, que de melódica passa a elétrica, estridente. Ora nos convida a um sono descansado, ora nos incentiva a acordar e coloca todos os sentidos em alerta. Uma e outra vez.
É, em suma, um espetáculo surpreendente: pela forma como Paolo Angeli interage com a guitarra, que ao longo dos anos tem vindo a personalizar, pelos diferentes ritmos, pelos elementos que introduz durante o concerto - como molas clip, um cartão de visita, uma tampa de alumínio para lava loiça - e que lhe permitem descobrir e experimentar novas sonoridades.
A guitarra da Sardenha, o experimentalismo e Pat Metheny
O experimentalismo é a principal característica do trabalho deste músico. Pegando na música tradicional da Sardenha, Paolo Angeli "inventa formas para se expressar", explica José Miguel Pereira, do JACC.
"Paolo Angeli é um músico muito especial, com uma música de caráter muito singular. A tradição apresenta-se como uma base muito forte, a refletir a cultura da Sardenha, mas absorveu uma série de influências. Não é fácil catalogar o seu estilo", acrescenta, para concluir que "é quase uma metáfora do que são as Aldeias do Xisto". Ou seja, olha para a tradição e preserva-a inovando e dando lugar ao experimentalismo.
Prova de experimentalismo é a guitarra da Sardenha que acompanha o músico e que ganha tanto protagonismo como o próprio. Tem mais cordas que o habitual, o que permite, por exemplo, que seja tocada como se de um violino se tratasse, está ligada a pedais por cabos de bicicleta, tem cabos de metal que lembram o som das baterias e dois pinos, um a remeter para o som de um telemóvel a vibrar e outro que recorda o trabalhar dos motores dos walkman.
Já depois do concerto, Paolo conta que a ideia de adaptar uma guitarra ao seu estilo nasceu em 1996, numa conversa com Pat Metheny.
Encomendaram uma guitarra para cada um e, daí para cá, Paolo tem vindo, progressivamente, a fazer transformações. "A simplicidade é a base do meu dia-a-dia, mas, na música, encanta-me a complexidade", diz. Por ele pensadas, as ideias são executadas por artesãos. “É um trabalho que leva muito tempo”, porque é preciso “aprender a utilizar e a tirar partido de cada transformação”.
A diversidade de elementos que a guitarra integra e que, paralelamente, o músico introduz ao longo do espetáculo, leva a outra questão: como mantém a concentração? Paolo usa os pés, as mãos, a voz, por vezes tudo em simultâneo e faz ajustes constantes.
Explica que inicialmente era "muito difícil" conjugar todos estes elementos. “Agora já é muito instintivo e natural”.
O alinhamento definido pelo ambiente
Também natural é o alinhamento de cada espetáculo. Deixa-se levar pelo ambiente e diz que gosta de olhar na cara das pessoas que o veem e perceber a sua reação.
Conta que, há uns tempos, se ia apresentar em Nova Iorque. Um daqueles espetáculos ditos importantes. Achou, por isso, que devia definir quando fazer o quê. Em vão. No momento, quando olhou o público, decidiu que havia de fazer como sempre faz e dar espaço ao improviso.
Tem cerca de 5 horas de composição gravadas que lhe permitem seguir vários caminhos e, assim, marcar a diferença em cada espetáculo. À medida que o concerto vai acontecendo, vai fazendo o que lhe ocorre.
"É muito diferente de sítio para sítio", diz, exemplificando com o o concerto que deu no dia anterior no Porto. "Foi muito urbano, industrial. Havia muito ruído”. Explicação: Na altura do espetáculo, Portugal defrontou Espanha, numa partida a contar para o Campeonato Mundial de Futebol.
Mesmo que não se goste da música, é difícil, para não dizer impossível, ficar indiferente à criatividade e à polivalência que demonstra em cada momento do espetáculo.
A conquista do público
"A experiência de ver artistas neste tipo de territórios é inusitada e demonstra que são locais tão bons para acolher este tipo de iniciativas como qualquer outro e, aqui, será sempre uma experiência diferente", considera José Miguel Pereira, sublinhando que "o Interior está vivo e bem vivo".
A mesma ideia é sublinhada por Joana Pereira, da Casa Ti'Augusta, para quem esta iniciativa demonstra que nestes territórios também é possível "fazer acontecer" e que as pessoas são recetivas.
"A maior parte das pessoas saiu daqui satisfeita e surpreendida com o espetáculo", diz, esperando que seja possível repetir a experiência.
O cenário, o Pátio Ti'Augusta, inserido no meio de construções de xisto e os sons produzidos pela música de Paolo Angeli motivou revivalismos.
José Farinha, que assistiu ao concerto acompanhado por Paula Mendonça, falou em sons que, conjugados com o "instrumento cinematográfico", transportam o público para "as memórias dos nossos avós". São ambos entusiastas deste género musical e deixaram o local surpreendidos com a atuação de Paolo Angeli.
La Salete e António Laia protagonizaram um cliché de casal: La Salete queria sair e ver e ouvir e ele preferia ficar no conforto do lar.
"Adorei", disse simplesmente La Salete. António, que chegou algo incrédulo, admitiu que foi um bom espetáculo e, à semelhança de José Farinha, viajou ao passado, desta feita para o tempo em que as campainhas dos bois, "um som belíssimo", soavam por toda a aldeia.
No final, ambos voltaram para casa satisfeitos.
Texto: Andreia Gonçalves