Take care of each other. It’s your only chance for survival.
Nicholas Ray
O Manuel é um habitante do Pinhal Interior, aquele que ardeu quase por completo este verão. O Manuel tem 70 e poucos anos e no seu terreno tinha uma horta e alguma criação, videiras das quais todos os anos espremia um orgulhoso vinho, oliveiras que tinha plantado com o seu pai e avô, e umas colmeias às quais podia ir em mangas de camisa porque as abelhas o conheciam desde sempre. Ali no seu terreno, ao lado da casa agora sem janelas e telhado caído, havia também um anexo onde guardava alfaias agrícolas e um curral para meia dúzia de cabras. Sobra uma que escapou miraculosamente, as outras foi dar com elas carbonizadas num caminho que sempre haviam feito e para o qual instintivamente fugiram sem perceberem que iam em direção ao abraço do fogo. Medronheiros também não há e cogumelos este ano decerto não vão nascer. Talvez nem nos próximos anos. E agora o que vais tu comer, Manuel? Já não terás couves pelo Natal, por isso também não te deverá fazer falta o azeite para temperá-las, abundantemente como gostavas, vertido dos dois garrafões que as tuas oliveiras produziam todos os anos. A horta é cinza, a tua pele é fuligem, a paisagem silêncio. Mas lá fora há muito barulho, vindos do exterior sucedem-se os carros e fatos pretos de passou-bem consternado e flashes ruidosos, dizem muita coisa muito alto virados para as objetivas de costas para ti, e falam com gestos largos que não percebes. Não percebes, Manuel? Então não vês que vem aí a recuperação, os planos, as medidas e os séquitos técnicos, a sobranceria estratégica e a solidária condescendência? É a mobilização nacional, homem! São pessoas que nunca pensaram nisto e que agora pensam demais. Vamos, em frente, que agora é de vez! Estamos a trabalhar para o país, não podemos olhar só para a tua horta. O que vais tu comer, Manuel? Entretanto aceita lá a caridade, veste o que não é teu e come o que te põem à frente. De qualquer maneira, Manuel, tens de perceber que esse é o plano em curso, é o mundo a girar e este fogo veio pôr a nú a roldanazinha que nós somos. Vocês aqui são muito poucos. E velhos, ainda por cima. Está toda a gente nas cidades e são cada vez mais os que para lá querem ir. É uma tendência mundial, o que se há de fazer? Lá são mais controláveis, percebes? Ninguém tem hortas, nem sabem o que isso é, por isso comem da mão do dono... perdão, da prateleira. Nas cidades quanto mais prateleiras mais “liberdade de escolha”, confundem solidão com individualidade e inebriam-se de prazer para enganar o medo. Não percebes o que te digo, Manuel? Pois, não és moderno, não tens apps no bolso nem és um empreendedor resiliente - eras autónomo, mas isso hoje não é um chavão, não produz soundbyte. A única coisa que sabes é quando podar e enxertar árvores, cultivar alimentos, fazer queijo e pão, falar com as abelhas e com as cabras, colher ervas para chás de diversas maleitas, levantar um muro de pedra e esculpir cepos, olhar o céu e provando o ar adivinhar o tempo que aí vem, pressentes os ciclos da terra e antecipas todos os seus animais, conheces os humores do rio e as zangas no café da aldeia, sabes que entre o céu e a terra estás tu e tudo o que deles em ti conflui para se renovar. Mas para que serve isso? Agora, para nada. No entanto, se tiveres sorte, talvez alguém esperto te integre na estatística de um qualquer projeto “smart”. Ainda melhor: talvez sejas chamado para mimicar frente a turistas uma destas coisas que sabias. É a moda e é melhor do que nada, que é o que agora tens, bem vistas as coisas. Aguenta lá a fome, engole as lágrimas e dá-te por feliz de estares vivo. Podias ter-te evaporado, que ninguém te vinha acudir. Sabes que isto de proteger pessoas e bens é uma maçada, importante é controlar o défice e sairmos do lixo, nem que para isso tenhamos de te atirar para lá a ti, Manuel.
Bruno Ramos
Diretor de Comunicação da ADXTUR – Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto